RECLAMAÇÃO DO OUVINTE: OUVINTE RECLAMA?

Sandra de Deus

Jornalista
professora do Departamento de Comunicação da Faculdade de Comunicação da UFRGS
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFRGS.

Resumo:  O ouvinte recorre a emissora de rádio para o encaminhamento de solicitações/denúncias/reivindicações relacionadas com que entende serem seus direitos. Os objetivos que orientam esta participação podem ser políticos e este ouvinte identificado através de um recorte na programação da emissora onde surgem as várias vozes que se enfrentam e polemizam. A programação das emissoras de rádio tem gerado espaços importantes para a canalização das inquietudes políticas, tanto que é impossível pensar a participação política fora dos meios, particularmente do rádio que utiliza o recurso da legitimidade de se apresentar como serviço público. O desafio que se coloca para o ouvinte é como se apropriar do espaço e fazer valer seu discurso de cidadão quando está inserido em um espaço de disputa que envolve poder local e compromissos econômicos.

Palavras- chaves: rádio – cidadania ­– política

Introdução

Esta reflexão deve dar conta de pelo menos duas dívidas: refletir sobre a reciprocidade do veículo rádio e transformar em anotação acadêmica o que se constituía em diário dos ouvintes de um programa de rádio. Para tanto, se debruça sobre os estudos do rádio, aponta hipóteses que poderão ou não ser respondidas e busca a partir da seleção das manifestações dos ouvintes, analisar e identificar o discurso radiofônico

Os depoimentos dos ouvintes que aparecem no texto foram encaminhados ao Programa “Controle Geral” veiculado pela Rádio Imembuí1 de Santa Maria (RS) no período compreendido entre 1995-97. Não são identificados os ouvintes por nomes, porque esta se constituía na prática do Programa. Esta identificação aparece pelo mês e o ano em que a manifestação foi encaminhada para a Rádio.

Pesquisadores do rádio como Haussen ( 1997) identificaram que o rádio contribui com a organização dos relatos da identidade e do sentido de cidadania possibilitando que as populações mais distantes entrem em contato com o mundo. No início do rádio brasileiro os artistas preferidos entravam em todos os lares, sem pedir licença e sem qualquer distinção de classe.

As novas tecnologias provocaram uma abertura da programação das emissoras para muitas vozes e foram crescendo as exigências do ouvinte/cidadão. Para comunicadores e pesquisadores em ciências sociais é complexa a compreensão dos componentes envolvidos nessa relação do rádio com o ouvinte. Requer estudo amplo sobre a linguagem do rádio. Como veículo de comunicação, o rádio é um canal privilegiado para o cidadão dividir com instantaneidade as suas angústias com os outros ouvintes/cidadãos.

Um ângulo desse problema está na essência da convivência pública, do bem-estar ou ausência deste, como falta de energia elétrica devido aos problemas na rede de abastecimento, o lixo urbano que ocupa passeios públicos, a precariedade de vias públicas, a desatenção dos setores de saúde e tantas outras reivindicações que se somam à melhor qualidade de vida, ao cumprimento de direitos e denúncias de violação; o outro é oculto e acena para as distorções da linguagem e do papel do rádio.

1. Rádio e Ouvinte

O ouvinte recorre a Rádio2 para reivindicar, solicitar e denunciar. A Rádio abre espaços na programação para ter o retorno da audiência e para fazer uso deste ouvinte como uma forma de se contrapor ou apoiar o poder local. Este texto se debruça sobre este papel do veículo rádio a partir do programa “Controle Geral” da Rádio Imembuí de Santa Maria (RS). Para esta reflexão é importante definir de que rádio se fala e de que ouvinte se faz referência.

Neste sentido, tenta-se em primeiro lugar delimitar o tipo de emissora. Trata-se do rádio informativo definido por Meditsch ( 2001), como aquele que tem “maior profundidade em relação à programação tradicional de notícias” tanto que “aprofunda e contrapõe idéias e opiniões com facilidade e orienta as massas urbanas como o cão de um cego”. Para o autor, o rádio informativo é:

instituição social com características próprias que a distinguem no campo da mídia e no próprio campo do rádio. Este é contemporaneamente mais plural e diferenciado em alguns aspectos, embora mantenha outros em comum com o rádio da primeira metade do século, onde se localiza a sua origem histórica e também a de sua identidade enquanto instituição. ( p. 30/31)

Não se trata do ouvinte que busca assistência da Rádio ou que deseja ouvir música. Trata-se do ouvinte que participa da programação da Rádio seja por telefone, e-mail, carta ou fax não para buscar assistência ou por fascinação com o que está sendo veiculado. É aquele que expressa uma necessidade de ser escutado e de exercer o direito de participar, esperando assim uma resposta ou a solução do problema narrado. A participação na Rádio se dá por diferentes motivações, não sendo privativa de um setor social em particular. O impulso tem a mesma origem, ou seja, a necessidade de ultrapassar o espaço doméstico para ser reconhecido.

Os pioneiros do rádio no Brasil formulavam ideais educativos pressupondo uma contribuição para o crescimento intelectual das camadas populares. Roquette Pinto percebeu a potencialidade do rádio compreendendo as possibilidades do veículo e sua eficácia como fator de integração dos indivíduos na sociedade. Ao longo da evolução foi se percebendo que existiam dificuldades para o rádio se efetivar como veículo de educação popular idealizado no início. No Plano “Rádio e Educação no Brasil”, o pioneiro propõe as bases concretas de atuação e implantação do sistema ressaltando a descentralização quanto à programação, respeitando as diferentes regiões e localidades; apelo aos recursos humanos da comunidade e participação consciente do povo e das comunidades. Entusiasmado com o rádio nascente, Roquette Pinto apud Moreira (1991) afirmou:

(...) nós que assistimos à aurora do rádio sentimos o que deveriam ter sentido alguns dos que conseguiram possuir e ler os primeiros livros. Que abalo no mundo moral! Que meio para transformar o homem, em poucos minutos, se o empregar com boa vontade, alma e coração.

O veículo pela própria conjuntura da sociedade, evoluiu para o comercial e para o popular. Esta mudança implicou em uma relação maior entre indivíduo e coletividade, passando não apenas a vender produtos mas a ditar comportamentos, mobilizar pessoas para a participação ativa na vida nacional. Assim se chegou a época de ouro do rádio brasileiro. Sobre esse período, Costela (1978) escreve:

Como a única maneira de atrair o anúncio é garantir-lhe maior penetração inicia-se uma guerra pela conquista de públicos sempre maiores. Na ânsia de angariar ouvintes, inclusive os numerosíssimos analfabetos, a programação de certas emissoras vai-se popularizando, a exemplo da Rádio nacional, boa parte desses programações, mais do que o popular descem ao popularesco e ao baixo nível( Costela, 1978, p. 183)

No Brasil dos anos 30 o rádio foi importante para a gestação do sentimento nacional traduzindo a idéia de nação e de cotidianidade. Desde a sua consolidação o rádio tem sido usado das mais diversas formas e com diferentes finalidades pelo Estado, por partidos políticos e sindicatos, por movimentos sociais, ecológicos e mais recentemente por grupos religiosos. Portanto, o seu papel político é inegável, seja qual for a orientação. Para uma melhor compreensão é preciso refletir sobre o contexto em que está inserido e a linguagem utilizada. Meditsch (1999) faz referência à dificuldade que acompanha o discurso do rádio informativo desde o princípio. Este obstáculo é assentado no como expressar de forma “sonora um conteúdo” originado na tecnologia impressa.

A Rádio descobriu, nos últimos anos, que abrir seus microfones para os ouvintes e dar espaço para as reivindicações é um grande negócio. Estes espaços dão retorno econômico, o que parece ser a primeira motivação, e poder político, onde se assenta esta reflexão. Estes espaços que se oferecem ao cidadão são de grande importância porque se constituem em oportunidades de pressão e de expressão.

Parte-se, portanto, da hipótese de que a relação rádio/ouvinte nem sempre tem objetivos claros o que remete a uma reciprocidade que é própria do veículo. Paiva (1997, p.551) lembra que a mensagem do rádio “é uma construção múltipla, fruto dos diferentes papéis que ao longo da sua história o rádio cumpriu e cumpre”. A relação rádio/ouvinte pode ser vista por dois lados: da perspectiva do ouvinte que diante da impotência do poder público procura o rádio onde busca auxílio, quem sabe uma mediação diante deste poder público; da perspectiva da Rádio que transforma a angústia, o problema individual em acontecimento, notícia, espetáculo e retorno ­econômico.

Os objetivos que orientam esta participação podem ser diversos e o ouvinte identificado através de um recorte na programação da Rádio a partir das vozes que se enfrentam e polemizam. A programação das Rádios tem gerado espaços importantes para a canalização das inquietudes políticas, tanto que é impossível pensar a participação política fora dos meios, particularmente do rádio que utiliza o recurso da legitimidade de se apresentar como serviço público. O desafio que se coloca para o ouvinte é como se apropriar do espaço e fazer valer seu discurso de cidadão quando está inserido em uma disputa que envolve poder local e compromissos econômicos. Interpelam-se as dificuldades da relação entre cidadania e os espaços radiofônicos.

A hipótese apresentada se desdobra em uma primeira sub-hipótese que procura identificar se o ouvinte que participa da programação da Rádio busca espaço para opinar , para se fazer ouvir por razões variadas como solicitar informações, pedir assessoramento legal, realizar denúncia sobre ausência de um serviço público ou opinar sobre política. São participações individuais e raramente em nome de uma comunidade, organização ou movimento.

Esta relação do rádio com os cidadãos é pontuada pelo exercício da cidadania e pela linguagem do veículo. Winocur (2000, p. 38) alerta que: “ las audiencias pueden participar en la producción de los mensajes de comunicacción, cambiando sus significados “. O que o ouvinte quer, não importa a classe social, é transcender o espaço doméstico com o objetivo de ser reconhecido. Esta é uma análise que remete a interpelações ideológicas diferentes. A Rádio e a televisão são concessões públicas de um bem coletivo. É provável que esta relação determine campos problemáticos uma vez que estabelecidos no espaço dos vínculos entre Estado e sociedade, particularmente quando entre um tipo de Estado e a forma diferenciada de gestão pública.

Um segundo desdobramento da hipótese é o fato de que a relação do rádio com os ouvintes está diretamente vinculada a participação do cidadão no poder local que representa a sociedade, considerado o responsável pelo atendimento, pela guarda do serviço público. De um modo geral o Estado , ao longo dos anos, tem demonstrado dificuldades em dar respostas para a crescente exigência do cidadão.

Uma terceira sub-hipótese trata da participação do ouvinte nos programas de rádio que remete ao crescimento educativo do cidadão no que se refere aos direitos sociais. A Rádio aparece, então, como uma alternativa para canalizar o descontentamento e denunciar a precariedade dos serviços públicos ou para se contrapor à forma diferenciada de gestão pública. Como o rádio é um meio, significa se debruçar sobre a penetração deste na sociedade, sobre a sua história e sobre a linguagem.

Diante das hipóteses apresentadas surgem algumas perguntas. O que motiva o ouvinte a procurar a Rádio para solicitar, denunciar, reivindicar direitos? O rádio disputa espaços de poder com o poder público? Como o ouvinte aparece neste discurso radiofônico? As respostas podem ser procuradas na análise do discurso do rádio para ser este “canal competente” de encaminhamento das angústias do ouvinte. Por um lado o ouvinte/cidadão se conforta em buscar auxílio da Rádio, mas por outro o veículo nem sempre é capaz de representá-lo e dar sentido a cidadania. Canclini (1996) afirma que:

desiludidos com as burocracias estatais, partidárias e sindicais, o público recorre à rádio e à televisão para conseguir o que as instituições cidadãs não proporcionam serviços, justiça, reparações ou simples atenção. Não é possível afirmar que os meios de comunicação de massa, com ligação direta via telefone ... sejam mais eficazes que os órgãos públicos, mas fascinam porque escutam. ( Canclini, 1996, p.26).

A Rádio mesmo atendendo os ouvintes não está em condições de ter mais eficiência que os órgãos públicos. Ao dar atenção amplia os espaços do cidadão. O interesse privado, ao ser veiculado se torna coletivo. O problema está em compreender o discurso radiofônico que procura fazer frente às formas diferenciadas de gestão pública adotadas pelos poderes locais para atender as expectativas do cidadão cada vez mais exigente de seus direitos. Winocur ( op. Cit.) assegura que :

los participantes se caracterizan porque recurren com frecuencia a la radio o a otros medios para realizar personalmente o por teléfono algún tipo de denuncia, reportar un abuso de autoridad (...) o simplesment expresar opinión.(Winocur,2000, p.40).

2. O programa Controle Geral

O Programa “Controle Geral” sobre o qual se faz esta reflexão vai ao ar atualmente pela Rádio Santamariense de Santa Maria3 no horário entre 06 e 08 horas da manhã. Foi criado em 1º de dezembro de 1975 na Rádio Imembuí, também de Santa Maria onde permaneceu até o 1997, quando o apresentador do programa se transferiu para a Rádio Santamariense levando a marca.

A Rádio Imembuí S.A é a mais antiga emissora de Santa Maria sendo conhecida como “A pioneira”. Opera em AM com 960 Khz e uma programação variada que inclui esportes, notícias e interesses da comunidade no estilo rádio informativo. Ao colocar no ar o “Controle Geral”, a Imembuí naquele momento optou por um formato mais profissional de jornalismo em rádio com produção, equipe de reportagem, correspondentes em outras cidades, boletins e unidade móvel nas ruas para acompanhar solicitações encaminhadas pelos ouvintes.

O programa “Controle Geral”4 possui até hoje o formato radiorevista que permite inserir no espaço de duração do programa entretenimento, informação e opinião. No período entre 1995 ( ano em que o programa completava 20 anos) e 1997 ( último ano em que permaneceu na Rádio Imembuí), o “Controle Geral” adotou espaços destinados aos assuntos comunitários e obteve um alto índice de audiência na cidade com participação dos ouvintes não apenas durante a veiculação do programa mas em outros horários quando os ouvintes recorriam ao escritório da Rádio para deixar por escrito a solicitação. Esta relação estreita com a comunidade fez com que, pelo menos, uma vez por semana o Programa fosse transmitido diretamente de um local da cidade, fora dos estúdios.

3. O ouvinte ouve e fala

Ouvinte como o termo decreta é para ouvir. Ouvinte é aquele que ouve. Mas ouvinte também fala. Em muitas Rádios a relação ocorre da seguinte forma: o ouvinte liga para a Rádio e um profissional atende a solicitação chamada normalmente de “reclamação do ouvinte”. Esta anotação é repassada ao apresentador para fazer a veiculação e pedir providências. Os ouvintes acabam estabelecendo uma relação de dependência com os programas de rádio, especialmente em emissoras voltadas para a comunidade regional ou local. Na Rádio Imembuí, particularmente no programa “Controle Geral”, a relação não era diferente. A cada manhã, a angústia do ouvinte era repassada aos demais:

na minha rua tem um buraco. Ele é grande e esta de aniversário porque a gente já pediu pra Prefeitura e ninguém fez nada. Hoje caiu um carro ali dentro. Quando chove é pior . Vê se vocês fazem alguma coisa ( ouvinte maio 95).

os ônibus que fazem a linha Nonoai no horário do meio-dia estão diariamente superlotados. São dois carros no mesmo horário mas com uma lotação assustadora. Parece que vão virar. É Preciso mais um carro neste horário (ouvinte, maio 95)

A hipótese levantada por esta reflexão é de que os objetivos do ouvinte não são claros no momento em que entra em contato com a Rádio. No entanto como se sente atraído pelo veículo, como encontra um interlocutor aproveita para dividir a angústia. Esta reciprocidade é própria do veículo rádio. Outros ouvintes que estavam vivendo uma situação semelhante em outros locais da cidade passam a ser representados e encorajados a tomar a mesma atitude, ou seja, ligar para a Rádio e contar o problema. É possível afirmar que este é o início do despertar da cidadania.

Por não ter encontrado respostas do poder público, o ouvinte solicita que a Rádio faça alguma coisa. A Rádio através do “Controle Geral” tem que apresentar uma solução, pelo menos esta é a expectativa do ouvinte. Certamente o rádio como veículo e a Rádio como empresa não pode determinar que funcionários venham a trabalhar na obra, mas pode ao divulgar o caso criar um “constrangimento” no setor público e com isto, de forma indireta obriga-lo a atender a reivindicação. Naquele momento, o Programa cumpria a função de pressionar o poder público para atender os direitos do cidadão. O ouvinte passava a ser chamado de cidadão.

esquina da Duque de Caxias com a Bozano onde ontem a sinaleira não estava funcionando aconteceu um acidente grave. As árvores próxima impedem a visão dos motoristas, o provoca os acidentes. É preciso cortar as árvores com urgência. Agora de manhã aconteceu um outro acidente ( ouvinte dezembro, 96).

Um buraco enorme na Conde de Porto Alegre quase esquina com a Tuiuti. Na semana anterior caiu um automóvel e um conserto mal feito foi realizado. O buraco voltou ainda maior. É crônico?( ouvinte dezembro de 96)

Lâmpada queimada a mais de meses na rua Tramandaí no Bairro Nonoai em frente a residência 520. Moradores reivindicam lâmpada nova ( ouvinte setembro 97)

Mas o ouvinte quer opinar, denunciar que aconteceu um problema, que não foram adotadas providências para atender uma reivindicação anteriormente feita. O ouvinte reclama e o radio descobriu que abrir os microfones para estes ouvintes é um grande negócio. Nem sempre significa ganho político quando se dá a disputa com o poder público mas recebe o retorno do consumidor da informação radiofônica. É também um canal que dá retorno aos governantes e aos setores que prestam um serviço público. Nem sempre quem tem o controle da prestação do serviço público tem a visão de todas as dificuldades que o cidadão está enfrentando.

Por favor, é preciso uma ação urgente da Brigada para terminar com uma gang que se reúne na Pracinha em frente ao Caridade nosfinais de tarde e início da noite. Alguns policiais passam pelo local e fazem que não enxergam..( ouvinte, dezembro de 96)

Na rua Bento Gonçalves próximo ao Clube Dores, à tardinha é impossível passar pela calçada em frente a uma lancheria porque se reúne uma gang que desrespeita principalmente as mulheres... ( ouvinte, dezembro de 96)

O rádio se configura desta forma em função da reciprocidade que é própria do veículo uma alternativa para o ouvinte ser reconhecido como cidadão. Significa , no entanto, compreender como o ouvinte deve se apropriar deste espaço e da forma de produção do rádio. Não se trata de discutir nesta reflexão uma política de comunicação capaz de tornar mais democráticos os meios – este deve ser objeto de outra reflexão- mas de compreender como Rádio e ouvintes possuem uma relação complexa, de disputa de poderes, mas sobretudo de reciprocidade.

Não é possível que nós funcionários não recebamos nossos vencimentos e que os demais contribuintes não tenham os buracos de suas ruas consertados para que o Dr. Farret embeleze seu curral eleitoral com o nosso dinheiro. Não podemos esquecer que o bairro onde o prefeito mora já foi contemplado com asfalto em todas as ruas. ( ouvinte, dezembro de 96)

PAIVA ( 1997, p.551) admite que a mensagem radiofônica deve ser apresentada como uma construção múltipla. Esta mensagem é fruto dos diferentes papéis que o rádio cumpre na sua função de ser companheiro, noticiador e mensageiro. O testemunho dos ouvintes solicitando para a Rádio providências é a comprovação destes diferentes papéis:

Os usuários do ônibus que faz a linha Tancredo Neves/ Campus já estão cansados de reclamar da falta de condições desta linha. Agora o transporte está mais caro e nada mudou a não ser o preço. Os ônibus circulam com lotação super extra, deixam pessoas idosas e doentes, que vão para o Hospital, na beira do caminho ( ouvinte , dezembro de 96).

Esquina da Bento Gonçalves com Machado de Assis faltam calçadas obrigando as crianças a transitarem pela rua , estando expostas ao perigo constante já que ali existem duas escolas próximas.. ( ouvinte, outubro de 95).

A dificuldade é compartilhada com outro ouvinte que pode ser conhecido ou não. É alguém que também está ouvindo o Programa naquele momento e que passa a integrar uma verdadeira rede, uma “multiplicidade de alianças” que fazem a sociedade. O veículo ao mencionar que o ouvinte reclama procura dar a dimensão do que o ouvinte está solicitando. O que é uma “reclamação” para o poder público ou para quem exerce a atividade pública não deve ser para o rádio que por estrutura e peculiaridade se constitui em mediação.

Faço um apelo em socorro dos moradores do Boi Morto ( bairro Juscelino Kubistcheck) que estão sendo submetidos a uma convivência crescente com o lixo depositado nas ruas, principalmente na faixa que vai para os quartéis e na faixa inicial da BR 158 ( ouvinte, julho de 95)

Conclusão

A relação rádio/ouvintes é marcada pela reciprocidade própria do veículo e pela disputa de poderes. O fato de que o rádio depende de seus ouvintes e que estes procuram o veículo para obter auxílio seja para ter espaço ou para fazer valer direitos, transforma o rádio num local privilegiado para as disputas de poderes. Diante deste quadro que pode ser observado pelas manifestações dos ouvintes quando “pedem” uma providência do Programa resta compreender a forma como o apresentador veicula o que denomina de “reclamação do ouvinte”. Todas as manifestações dos ouvintes apresentadas foram coletadas num período já distante e estão escritas, impossibilitando com isto obter conclusões sobre a tonalidade da voz do locutor.

Quando o ouvinte diz que na rua onde ele mora tem um “buraco que está de aniversário” quer sensibilizar o programa para divulgar a sua manifestação. Também deseja dizer para o setor público responsável pela manutenção de ruas que a situação é ruim e que pode ficar ainda pior. Exerce a sua cidadania quando busca uma solução para um aspecto do bem estar social. Em outros momentos, o ouvinte vai mais adiante fazendo sugestão. Ele participa denunciando um problema e antecipando uma solução. Portanto, neste exemplo quer influir no coletivo.

Como os objetivos do ouvinte que participa do programa de rádio são diferentes, quando se manifesta diretamente em relação ao gestor público passa a ter uma dimensão política. Se refere a forma como o recurso público é administrado manifestando a disposição de disputar o poder. É diferente a forma de encaminhar a solicitação, mesmo que o sentido da disputa seja o mesmo do ouvinte que solicita providências em nome de outros, apresentando uma preocupação coletiva.

Por fim, é importante considerar que o rádio por sua estrutura de empresa e os ouvintes pela necessidade de participação disputam espaços de poder. Esta disputa se dá tendo como objeto o poder público. É esta disputa de poder que fascina o ouvinte e faz do rádio um veículo especial para utilização política.

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Notas

1   O Programa Controle Geral no formato radiorevista foi apresentado na Rádio Imembuí no período entre 1975- 1997, sendo depois transferido para a Rádio Santamariense.

2   A Rádio se refere a emissora e o rádio trata-se do veículo.

3   Santa Maria é a quinta maior cidade do Rio Grande do Sul e está localizada na região central do Estado.

4   Quando se transferiu de emissora o Programa não só manteve a mesma proposta como continuou sendo um canal dos ouvintes. Em dezembro de 2001 o Controle Geral completa 26 anos no ar com a apresentação do jornalista Vicente Paulo Bisogno.