O CORPO TRIPARTIDO E O TRÍPTICO
HOMOERÓTICO EM
DOS OLHOS, DAS MÃOS, DOS DENTES, DE PAULO ROBERTO SODRÉ
Deneval Siqueira de Azevedo Filho
UFES
(...) O ENCONTRO ERÓTICO DOS CORPOS
É REVELADO, ENFIM, PORQUE A DIVERSIDADE DAS FORMAS DE PRAZER CONQUISTOU
VISIBILIDADE
(...) |
(...) É somente no corpo e nos seus
encontros que o prazer se faz presente, e em nenhum outro lugar fora
destes.
(...) A palavra e a imagem inscrevem-se no corpo, tornam-no objeto e desejo ( de olhar). Um desejode carne e osso. |
( Carlos André F. Passarelli )
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Paulo Roberto Sodré tem publicados vários livros de poemas, novelas e ensaios e é um dos mais promissores escritores da Literatura Brasileira Contemporânea. Neste trabalho, interessa-me registrar algumas de suas proezas estéticas em seu livro de poemas Dos Olhos, Das mãos, Dos dentes (DEC/Sedu, 1992), cujo projeto lírico-plástico é ousado e caprichoso, de traço poético minucioso e competente, muitas vezes ligado à tradição mais trovadoresca possível – a das Cantigas de Madre (das quais o poeta é atualmente um pesquisador) -, que hoje se requer, se cobra e se imola em versos que virão desvelar a mais pura evolução do desejo amoroso ou mais precisamente do desejo homoerótico, do receio que se manifesta diante de tal desejo, do olhar que se reparte em devaneio, e da chegada ao porto, ao admitir o próprio corpo como ponto inicial de partida para outros territórios – outros desejos, outros corpos masculinos.
O livro é dividido em “Intróito”, “Dos olhos”, “Das mãos”, “Dos dentes” e “Madrigais secos”. Entretanto, como projeto estético, pode-se considerar uma divisão tripartida, pois há um eu-lírico-narrador que nos conta uma história de desejo que coincide com uma história de torpor homoerótico platônico de três eus, em três momentos líricos diferentes: 1) “Dos olhos”, em que o olhar é o ponto de fuga para onde convergem o desejo homoerótico, o receio e a dor (“Dói olhá-lo. Dói um rasgo tão fundo”); 2) “Das mãos”, entrelugar do onanismo mais dócil e cortês, que o eu ousa olhar e desfrutar o gozo (“Passando, minhas mãos se enchem de céus”); 3) “Dos dentes”, lugar poético onde o eu rasga a fantasia para admitir-se entre as mãos e coxas do outro, num outing tranqüilo (“quando para mim sua masculinidade desperta,/ tudo o que em mim é masculino anoitece/ (...) navega, entre seu cerco e abraço, meu cio/ de vermelha dança de fruta sob os claros dentes”.)
O poema que abre “Dos olhos” é o seguinte:
Dói olhá-lo. Dói um rasgo tão fundo
Nas mãos de meus olhos tontos
De tanto azul jeans que contorna sua pele
Com escadas para um jorro de masculina maciez.
Arranha presumir seu cheiro entre
os cabelos e os lábios e o pêlo calmo
que acompanha peito, braços e pernas
adivinhadas, ai, sob a pele azul.
Crispam-se meus dedos tumefatos e largos
Com inventarem suas ruas, clareiras, solares.
As idéias me unham, as que colho de seu corpo
Entre meus olhos doídos e meus óculos em agonia.
“Olhos tontos”. De imediato, depara-se com a inquietação do poeta, despojada e contida ao mesmo tempo, à medida que desvela seu objeto de desejo: “de tanto azul jeans que contorna a sua pele”. É um texto repleto de vida e sensualidade, em que o eu-lírico se introjeta ao mesmo tempo que se expõe, desbravando e desnudando, fantasiando o corpo do outro, enquanto busca, na fluidez e sensualidade da linguagem, a própria nudez de seu homoerotismo, ou a “masculina maciez”, tanto metáfora de androginia amedrontada quanto metonímia de gozo sêmico, de orgasmo voyeur, contido-crescendo: “de tanto azul jeans que contorna a sua pele” é sensual, sutil, desbravador. A articulação do corpo homoerótico não se dá somente pela temática, importante frisar; mas também pelo jogo da linguagem e das imagens inusitadas, ora usadas como ponto de apoio do tema (como em “com escadas para um jorro...”, que metaforiza o crescente excitar-se pelo olhar até o êxtase), ora para, como num rápido suspiro, admitir o pecado-culpa do gozo, inesperadamente no repouso-purificação pós-orgasmo-contido.: “adivinhadas, ai, sob a pele azul.” O elemento mais forte do poema-corpo-masculina-maciez é, sem dúvida, a sensualidade à flor das palavras que pelas “ruas, clareiras, solares” vão espalhando o êxtase poético de um canto que mergulha profundo em suas próprias sensações, desnudando também o leitor que pode se ver frente a frente com suas próprias contradições ao pensar nos limites entre o erótico e o homoerótico, o sexo e o amor. Isso porque, muitas vezes, o homoerotismo, nessa primeira parte, é jogado tão sutilmente nos versos que pode passar despercebido ao leitor menos atento. Não é, todavia, o caso desse poema. Porém, na p. 39, por exemplo, as sutilezas são tantas que teríamos mesmo que decifrá-las:
Espalho meus olhos sobre sua presença.
As tardes mimam o delicado de seus ombros magros
E seus cachos declaram ouro e trechos de nuca
Com pistas para cheiros simples e maciez.
Todo seu jeito sopra chegada de junho
No calendário de hibiscos e nuvens: calma
Que meu rosto e meus pensares aguardam.
Exatos cabem seus olhos, suas mãos, sua tez de poente
Nos poemas que adio, nas vontades que guardo,
Nos abraços que escondo, na alegria que prendo.
Meus olhares não trazem seus crescentes;
Seu lume meus escuros não alcançam
Meus verbos não se transformam em você,
Um gosto de agulha ancora em meus sentidos.
Paulo Sodré dispõe propositadamente os poemas de maneira que eles se articulem para que haja melhor intenção homoerótica. O poema transcrito acima é precedido por três outros que recebem a numeração I, II e III, como se o transcrito acima fosse a sua conclusão. É tanta sutileza, é tanta perspicácia no trato com a poesia que a nossa sensibilidade há que estar aguçada, atenta, aflorada, para acompanhar a egotrip “De olhos” com o poeta. Observemos: em “I”, “Adormecido: um estado manco de poema/ que não traz, por capricho, seu corpo incendiado/ de músculos calados, em que uma luz clara/ acastanha a música de seu traço simples.” O poeta encontra-se introjetado, espreitando o seu próprio desejo, ancorado no seu objeto maior: dar rumo ao seu lirismo ardente, desejoso, erótico, num poema ainda “manco”; segue e se ergue para nos mostrar a vertigem de seu corpo: “Escutei um vestígio de cheiro, terra/ abrindo tantos brotos de moço absinto.”, para, então, sob a lâmina mais afiada da língua, em corpo, em linguagens, se expor, ainda estonteado pela fantasia: “onde minha querência se fermenta em filmes/ selados com seu corpo: cós de cio e mês.” Os sete dísticos vão desfiando o desejo do poeta que, por sua vez, saqueia a linguagem delicadamente para nos reiterar que ele está à beira do “moço absinto”. Ou melhor, que se fantasia “sobre seu colo e sono e tez e ombros nus. ”As metáforas homoeróticas são ricas e perfeitas no sentido mesmo que lhes dá a teoria literária: só nos apresentam um elemento da similitude, afastando-se da comparação mais simples para enriquecer os corpos, a linguagem e insinuarem-se por “filmes selados com seu corpo.” A licenciosidade de “cós de cio e mês” nos é dita da maneira mais precisa possível; essa excitação, “cós” da calça aberta, “cio” para nos mostrar a fantasia da ereção do outro e a palavra “mês” que nos dá a chave do ciclo erótico são de extrema completude: para haver a cumplicidade, basta que o eu do poeta fantasie a plena recepção do prazer do outro – corpos contemplados e contemplativos. Isso fica ainda mais evidente no poema “II”, onde os versos que abrem o poema refulgem como relâmpagos, rumo à pureza lírico-homoerótica: “Despejado de mim, entre lençóis de nada,/ da noite agarro os frescos ramos de uma prata/ que destilo, suando anêmonas, fagulhas/ de um rebuscado aroma de pele, camurça/ castanha...”, com a tez, do “corpo lhano”, abusando dos perfumes, das cores, e, principalmente e radicalmente, do prazer lexical, do prazer também com o seu texto (corpo/linguagem), permeado de palavras que copulam: como em “III”, “Inchado assim de febre que seu corpo outorga,/ adentro madrugada tornando-se dia,/ quando um astro redige claridade de novas,/ rasgando meus sonâmbulos desenhos, criptas/ de poemas monótonos onde descasco/ o vício de querer em mim os moços caros.” Comprovados a cópula e prazer com o poema, com o vício transcrito depois de perseguido o desejo contido/incontido nos “moços” queridos, ainda, no mesmo poema, há um jogo muito interessante de signos sobre a pele, uma “rua de rebentos doces: sua pele e mãos, seu dorso e seus ladrilhos/ de pêlo calmo. Ai, meu poema de sombras,/ absorva o leite fresco das camas e fronhas.” Depois de todas essas “criptas” é que Paulo Sodré nos diz: “Espalho meus olhos sobre sua presença .” Está aí a inteireza do desejo, da linguagem poética, completados pela sagacidade do poeta ao definir sua vontade-alegria-dor, via olhar: “Exatos cabem seus olhos, suas mãos, sua tez poente/ nos poemas que adio, nas vontades que guardo,/ nos abraços que escondo, na alegria que prendo.” Adia poemas para escrevê-los enquanto pensa em Caeiro (“Pensar é estar doente dos olhos”). Assim, nos exibe “Das sensações insuspeitas”, antes de ir às mãos:
Enquanto as antimetáforas de Caeiro explico
Suas fortes espáduas graves e claras brotam
Como cais para meu querer em metáfora de febre e segredo.
Caeiro varre os mistérios e meus olhos são atalhos
Para seus cachos, seu cheiro, seus vagos pêlos de ouro
Que pressinto entre uma leitura e um comentário.
Masculinos como o meio-dia, o poema de Caeiro
E seus ombros me encharcam de luz, de tanta luz,
Que tantalizo-me: louco com os claros versos abertos,
Tonto com seus largos ombros de manhã.
Em “Das mãos”, sob o anonimato das trovas e da tradição popular, o poeta nos põe sob “Suspeita”:
Toda luz carrega tumultos
Se sobre seu corpo manso
Ela espalha imagens de cachos e sardas.
Meus dedos rondam o delírio.
Toda luz carrega tumultos
Se de seu corpo pouco
Ela revela castanha virilha e haste tanta.
O delírio saqueia minhas mãos.
Paralelismos, musicalidade, metáforas plenas (“haste tanta”), o trato fino com a linguagem e com o corpo homoerótico, tudo foi dito anteriormente. No entanto, parece-me estar no domínio do vocábulo exato (“se de seu corpo pouco”), na intimidade com o léxico culto, nas artimanhas mesmo da língua culta o ponto mais alto do projeto poético, no que diz respeito à forma dada à maioria dos seus poemas. O poema “I”, de “Dos dentes”, brinca de tradição, rompendo com ela. Por quê? Intitulado “Redondilhados ou Idílios fora de moda”, o poema esbanja rimas, aliterações e assonâncias em três quartetos (quadras) bem musicais: é o canto desvelador, esgoelado em cantigas redondilhadas maiores e em tom campesino, evocando Domingos Martins, cidade mais bucólica e montanhosa não podia haver.
Domingos Martins tem moços
que lindos chegam nos olhos;
gerânios brotam dos matos
onde se deitam cheirosos.
Cantigas rolam nas águas,
nos seixos, nas estradilhas;
têm eles cheiro de terra
Toda vez que subo os frios,
os verdes, as quaresmeiras,
o gosto de bagos se enche
de vontades, de centelhas.
Para não dizer que não usou a palavra obscena, de vez em quando o poeta mergulha no desejo mais baixo, mas trabalha a forma de modo a se resguardar ao tratamento dado a esse mesmo baixo que tanto lhe atrai, apurando a poesia em contraponto, aguçando um toque leve de humor em alguns versos, para mostrar um desprendimento medido, sempre atualizando o desejo homoerótico usando com perfeição o tempo lírico para amenizar o chulo, como em “Pequenos quadros”, por exemplo:
I
Um filete de luz corre o lençol
e toca o escuro pêlo de seu colo;
os lábios róseos coram
de meu pau: recomeço.II
Seu zíper, em gerúndio, acorda:
revoada de estrelas
no céu sempre noite
de minha boca.III
Leve sua perna espreita a minha.
O ônibus freme de paisagens.
Não interessa seu nome,
mas pedaçosde seu sim.
Transgredindo tematicamente, desafiando a modalidade lírica, tentando uma comunhão de corpos (físicos homoeróticos e corpo/linguagem), demonstrando um domínio absoluto da matéria poética e do uso da forma, jogando, de vez, para fora de qualquer discussão, temas ou valores conteudísticos (sua poesia transcende o caráter de poesia gay), Paulo Roberto Sodré se impõe, para mim, como uma das grandes figuras da poesia brasileira contemporânea.
Referências
AGUIAR E SILVA, Victor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 1985.
AZEVEDO FILHO, Deneval Siqueira de. De Cantos, De Fotografias, De (In)vocações, DO OBSCENO E DOS PALCOS. Vitória: EdUFES, 1999.
____________ . Desarraigados – ensaios. Vitória: SPDC/UFES, 1995.
LYRA, Bernadette & GARCIA, Wilton (org). Corpo e Cultura. São Paulo: ECA/USP; Xamã, 2001.
PASSARELLI, Carlos André. “Em carne e osso”. In: Corpo e Cultura. São Paulo: ECA/USP; Xamã, 2001.
SODRÉ, Paulo Roberto. Dos olhos, das mãos, dos dentes. Vitória: DEC/SEDU, 1992.